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BRASIL – Desde o acordo assinado pelo governo brasileiro e o Vaticano, em novembro de 2008, a laicidade do Estado tem sido questionada no país. O Brasil é realmente um estado laico? Como igrejas e teólogos posicionam-se diante da obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas, um dos itens previstos no acordo? No dia 9 de junho, estudantes da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo puderam refletir sobre essas questões com o auxílio da educadora Roseli Fischmann, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de SP, onde dirige o Núcleo de Educação em Direitos Humanos, da Faculdade de Humanidades e Direito. Entre outras colaborações na área governamental ela integrou a Comissão Especial do Governo do Estado de São Paulo sobre Ensino Religioso nas Escolas Públicas e a equipe de redação dos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, sendo responsável pela redação do tema transversal Pluralidade Cultural.
No evento denominado “Café Teológico”, promovido pelo Centro Acadêmico João Wesley, com apoio da Faculdade de Teologia e Rede Ecumênica da Juventude, Roseli Fischmann defendeu a laicidade do Estado como garantia da liberdade de consciência, de crença e de culto. Ela explicou que essas três dimensões da liberdade são distintas, mas diretamente relacionadas. A liberdade de consciência diz respeito ao íntimo dos indivíduos. Mesmo o uso da violência ou a tortura não é capaz de cerceá-la; o indivíduo pode até ser coagido a determinadas ações, mas é impossível controlar o que se passa em seu pensamento. A liberdade de crença, também de caráter interior, “aloja-se no ninho da liberdade de consciência”. Já a liberdade de culto é a exteriorização da liberdade de crença e ocorre no espaço coletivo.
No Brasil do período imperial, exemplificou a professora, a liberdade de crença foi limitada pelo regime do padroado, que dava à Igreja Católica o status de religião oficial e única. Crentes de outras denominações só poderiam se reunir a portas fechadas, em edifícios que não tivessem a forma exterior de templo. “E ainda há países do mundo em que a liberdade de culto é tolhida”, alertou a professora.
Segundo Roseli Fischmann, a proclamação da República, em 1889, trouxe a separação entre Igreja e Estado e, a princípio, foi bem vinda pela Igreja Católica, incomodada pela interferência estatal. “Mas esse ponto sempre foi polêmico”, disse a professora. A instituição não queria perder a influência que sempre teve sobre a sociedade brasileira. Roseli destaca que durante 210 anos a Igreja Católica cuidou da escola pública, por intermédio dos jesuítas, que eram financiados pelo padroado. “É metade de nossa história! Ninguém se livra facilmente dessa herança”, afirmou.
Para a educadora, o ensino religioso ministrado em escola pública pode se tornar um perigoso espaço de luta pelo poder e uma violência contra as minorias. No caso brasileiro, pesquisas acadêmicas já detectaram vários exemplos de práticas religiosas adotadas no ambiente escolar que, aceitas pela maioria cristã, discriminam outros grupos religiosos. “Numa pesquisa que realizamos em oito cidades próximas a regiões metropolitanas, encontramos turmas de alunos aos quais se exigia a oração do Pai Nosso antes de iniciar as aulas. Vimos até uma diretora que mantinha um altar na escola”. Segundo Roseli, julgar que a maioria deva determinar os rumos de qualquer grupo social é uma distorção do princípio democrático. “A maioria elege e quem é eleito deve governar para todos e todas”, disse ela.
Governar para toda a população, no delicado campo da crença, seria a irrestrita adoção da laicidade do Estado, na opinião da educadora. Ela explica que as relações entre Igreja e Estado podem ser compreendidas em diferentes níveis. Nos estados teocráticos ocorre a fusão entre as duas instâncias de poder. O Estado existe como decorrência da religião. Tal é o caso da República do Irã, por exemplo. E nos estados em que o Estado é separado da religião, essa separação pode ocorrer com “hostilidade” — como da antiga União Soviética, em que a religião foi banida da vida pública – ou numa relação pacífica. Países como Uruguai e Costa Rica, informa a professora, sempre prezaram por ter o Estado desvinculado da religião, respeitando a liberdade de culto de todas as crenças. No caso do Brasil, no entanto, ocorreria uma quarta forma de relacionamento, que Roseli chama de separação “atenuada”: aqui, o Estado não apenas garante a liberdade, mas reconhece que valores religiosos podem ser relevantes para a população. Esse reconhecimento está na Constituição e explica, por exemplo, a isenção fiscal que privilegia templos religiosos, a existência de capelanias militares e o próprio. acordo com a Santa Sé, aprovado no ano passado. Contudo, segundo a professora, esse acordo fere o Artigo 19 da Constituição, que proíbe ao Estado firmar qualquer tipo de acordo com religiões ou seus representantes: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Para Roseli Fischmann, não vale o argumento de que a Santa Sé seria comparável aos demais estados: “Ninguém tem cidadania ou passaporte vaticanos”, resumiu.
Tolerância religiosa e espiritualidade
Após a palestra, a professora Roseli Fischmann recebeu perguntas da platéia. Dentre outros temas, ela foi questionada sobre a validade do ensino religioso público como promotor de diálogo e tolerância entre crentes de diferentes tradições e sobre o espaço destinado ao cultivo da espiritualidade dentro do ambiente escolar – que, não raras vezes, privilegia o individualismo, a competitividade e o consumismo.
A educadora argumentou que os docentes não têm a necessária formação para promover um diálogo isento de proselitismo. Segundo Roseli, seria muito difícil criar e transmitir um conteúdo que não confundisse as crianças, sobretudo as menores, que estão recebendo valores de suas famílias e grupos religiosos. “A transversalidade no ensino religioso já não é fácil nem para adultos”, disse. Numa escola laica, a religião estaria presente nos conteúdos existentes (como história, por exemplo), que abririam o necessário espaço ao debate sobre tolerância religiosa. Quanto ao cultivo da espiritualidade, Roseli Fischmann defendeu que o contraponto ao individualismo e ao consumismo está no estímulo à solidariedade e na defesa de valores e direitos humanos que, universais, não se limitam ao tão particular campo das crenças religiosas.
Por Suzel Tunes, da Assessoria de Comunicação da Universidade Metodista.
Extraído de: O Verbo
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